A evolução tecnológica é cada vez mais dinâmica e presente em nossas vidas e a novidade da vez é a tokenização e venda de propriedades digitais.

Há algum tempo tem se falado em NFT (Non Fungible Token), um certificado digital que garante a autenticidade e a unicidade usado para vários tipos de negócios, como obras de arte, tweets, músicas e, agora, imóveis. Mas de qual propriedade estamos falando? Seria daquele conceito tradicional explicitado nos artigos 1.225 e 1.227 do Código Civil? Não!

Na verdade, trata-se de um negócio disruptivo, desenvolvido com o avanço da tecnologia para facilitar transações e investimentos imobiliários, cuja estrutura jurídica para a sua concretização – até agora apresentada – desafia a legislação civil brasileira a recepcioná-la e a promover adequações e inovações legislativas para o seu perfeito funcionamento.

Para que o imóvel seja comercializado no mundo virtual, é preciso torná-lo um ativo único que, em linhas gerais, é uma assinatura digital do bem, gerada a partir de uma rede descentralizada, que associa o ativo ao seu dono, identificado e denominado “proprietário digital”.

A tokenização da propriedade ou propriedade digital se traduz como uma relação obrigacional entre o proprietário do imóvel e a empresa de tecnologia responsável pela digitalização da propriedade, o que se distancia da propriedade tradicional vivenciada até então e tutelada pelo sistema registral no país.

Para a efetivação desse negócio, é exigido que a propriedade real seja transferida à empresa de tecnologia no Registro de Imóveis, que passa a ser a proprietária de fato do imóvel e cria a denominada “propriedade digital” e sua consequente tokenização no mundo virtual por meio da tecnologia de validação dos dados, chamada blockchain, podendo ser vendida de forma integral ou fracionada, com regras próprias criadas pela empresa e regulada através de um smart contract.

Com a digitalização da propriedade, o token fica disponível para a comercialização e ao adquirí-lo, o comprador não passa a ser diretamente o proprietário do imóvel e sim o proprietário de um NFT que representa o imóvel e que lhe dará o direito de residir ou alugá-lo a terceiros. Em ambos os casos, receberá o aluguel proporcional à fração que adquiriu. Se o adquirente preferir morar no imóvel, receberá a parte do aluguel pago mensalmente correspondente à fração adquirida, como uma espécie de cashback.

De forma prática, o modelo lembra o conceito de um financiamento imobiliário, com a vantagem de que o comprador se torna dono de um imóvel no mundo virtual quando investe qualquer valor em NFT, dentro das suas condições financeiras, sem assunção de uma dívida e pode ir comprando novas cotas conforme o dinheiro entra, sem parcelas fixadas pelo banco como acontece no financiamento imobiliário tradicional, de forma simples e mais barata do que a forma convencional.

A questão que se traz à baila é a dualidade da propriedade imobiliária, no mundo real, no virtual e suas consequências. Para o direito registral brasileiro, o real proprietário do imóvel é a empresa de tecnologia, enquanto no mundo virtual, o dono do token, detentor da propriedade digital, é a pessoa qualificada para transacionar o imóvel como se proprietário real fosse. Assim, teremos duas realidades: a do Cartório de Registro de Imóveis e a da blockchain, cuja propriedade do token é regulada por um Smart Contract, que não reflete direitos reais e sim direitos obrigacionais.

Recentemente, a Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), publicou o Provimento Nº 038/2021 com o objetivo de regulamentar a lavratura e registro de escrituras públicas de permuta de bens imóveis com contrapartida de tokens. Pelo provimento, passam a ser exigidas declarações de que as partes reconhecem que o conteúdo dos tokens não representa direitos sobre o próprio imóvel permutado; de que o valor declarado para os tokens guarde razoável equivalência econômica em relação à avaliação do imóvel permutado e que não tenha denominação ou endereço (link) de registro em blockchain que deem a entender que o conteúdo do token se refira aos direitos de propriedade sobre o imóvel permutado.

O Provimento solucionou questões sobre a lavratura e registro da escritura de permuta de imóvel por tokens e as declarações exigidas pela Corregedoria ressaltam a importância de delimitar o que de fato está sendo adquirido, ou seja, um token que não representa direitos sobre o imóvel. Certo é que, outras indagações relativas a esta nova modalidade de negócio não se limitam àquelas solucionadas pelo Provimento, que está longe de encerrar assunto, eis que estamos diante de uma novidade complexa.

Entendemos que é fundamental para a segurança jurídica dos envolvidos e daqueles que venham a ser envolver com este novo modelo de negócio uma lei específica para regulamentar a relação jurídica da permuta imposta para sua efetivação com registros no sistema registral brasileiro e resolver incertezas produzidas por ela, incluindo o papel do COAF e outros órgãos com poder de fiscalização.

Por fim, a relevância desse novo negócio à sociedade é indiscutível, cabendo aqui ressaltar, a importância da tokenização da propriedade para o mercado imobiliário, que sofre com a burocratização e a falta de liquidez de imóveis e percebe a tecnologia digital como uma grande oportunidade para alavancar o setor, dada a anunciada facilidade para transmissão da propriedade digital e a possiblidade de transacionar frações digitais de imóveis com agilidade e custos menores.

*Zildete R. Medeiros e Kelly Durazzo são especialistas em direito imobiliário e sócias do Durazzo e Medeiros Advogados