O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu sobre a rescisão de contratos de compra e venda de imóveis com cláusula de alienação fiduciária — modalidade de garantia mais utilizada em financiamentos imobiliários. Os ministros afastaram a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) nessas hipóteses. Sendo assim, o comprador não tem o direito de reaver o valor pago antes de ficar sem o bem.
Essa decisão vale para os casos em que a rescisão foi motivada por inadimplência. Foi proferida ontem pela 2ª Seção com efeito repetitivo — ou seja, deve ser seguida pelas turmas que julgam as questões de direito privado no STJ (3ª e 4ª) e por tribunais estaduais de todo o país.
Havia discussão se deveria ser aplicado o Código de Defesa do Consumidor (CDC) ou a Lei nº 9.514, de 1997, que trata especificamente sobre a alienação fiduciária. Os ministros decidiram, de forma unânime, pela aplicação da lei (REsp 1891498).
Esse julgamento era bastante aguardado pelo setor imobiliário. Representantes das empresas dizem que se o resultado fosse contrário —com a prevalência do CDC — poderia haver redução de crédito e aumento de juros.
“Causaria um grande impacto negativo para todo o segmento de financiamento imobiliário, que se tornaria de alto risco para as instituições de crédito e resultaria na drástica diminuição de empréstimos e, por conseguinte, de novos empreendimentos”, diz Kelly Durazzo, sócia do Durazzo & Medeiros Advogados.
Segundo a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), que atuou como parte interessada (amicus curiae) no caso, mais de 92% dos contratos registrados em 2020 foram garantidos por alienação fiduciária.
Esses contratos funcionam assim: o comprador solicita o financiamento ao banco e como garantia de que vai pagar o financiamento, ele transfere a propriedade do imóvel para o credor até que toda a dívida seja quitada.
Quando o financiamento for pago, o comprador consolida a propriedade em seu nome. Mas se ele não honrar com as prestações, o credor pode retomar a propriedade e levar a leilão para recuperar a quantia emprestada.
Se o imóvel for vendido em leilão, o comprador inadimplente — que teve o contrato rescindido — só terá o direito de receber qualquer quantia se houver saldo a seu favor. O credor deduz do valor de arrematação a quantia referente à dívida e as despesas e encargos do imóvel.
Se arrematado por R$ 500 mil, por exemplo, e a dívida e encargos somarem R$ 400 mil, o comprador devedor receberá R$ 100 mil — mesmo que tenha pago uma quantia maior antes de perder o bem.
“Na hipótese de o imóvel ser arrematado pelo mínimo, o valor da dívida, nada restará ao comprador devedor”, frisa Olivar Vitale, sócio do VBD Advogados e representante da Federação Internacional Imobiliária, entidade que também atuou como “amicus curiae” no caso.
Ao decidir pela aplicação da Lei nº 9.514, de 1997, a 2ª Seção do STJ valida esse formato — diferentemente do que aconteceria se os ministros tivessem optado pelo Código de Defesa do Consumidor.
O artigo 53 do CDC determina que nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, são nulas as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.
O caso que estava em análise envolve a Living Barbacena Empreendimentos Imobiliários. A empresa havia apresentado recurso contra decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) favorável a compradores que se tornaram inadimplentes.
Na aquisição foi celebrado contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia, conforme escritura pública. Os compradores pagaram parte do valor financiado mas, por problemas financeiros, não conseguiram arcar com as demais parcelas.
A Living tomou o apartamento e não restituiu o valor de R$ 128,5 mil que já havia sido pago. Os compradores propuseram, então, uma “ação de restituição de quantia paga”. O TJSP aplicou o CDC e obrigou a empresa a devolver 90% dos valores pagos, devidamente corrigidos.
O STJ começou a julgar esse caso em setembro. Eduardo Luiz Sampaio da Silva, advogado dos compradores, afirmou aos ministros naquela ocasião que eles pagaram mais de 50% do valor do imóvel e o bem foi alienado e vendido depois de um ano.
“A empresa recebeu 50% e vendeu depois de um ano pelo valor integral. Isso nos incomoda”, disse, citando enriquecimento ilícito e defendendo a prevalência do CDC.
Já o representante da Living, Fernando Torreão, insistiu com os ministros que deveria ser aplicada a lei que regula as alienações fiduciárias. Além de entidades do setor, a empresa recebeu o apoio da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), que também atuou como parte interessada no processo.
O ministro Marco Buzzi, relator do caso, foi o único a proferir voto naquela ocasião — a favor da Lei 9.514. Disse que o legislador buscou evitar o enriquecimento ilícito na alienação fiduciária, citando que a norma prevê a devolução de valores ao comprador inadimplente caso, depois da arrematação, haja saldo a seu favor.
As discussões foram retomadas ontem com o voto-vista do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, que acompanhou o relator. Todos os demais integrantes da 2ª Seção também concordaram.
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