Decisões do judiciário colocam em risco operações do mercado de capitais lastreadas em CCI – Cédula de Crédito Imobiliário

Kelly Durazzo*

Com o advento da Lei nº 9.514/97, fora criado o Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI) e a alienação fiduciária em garantia de bens imóveis. Esta modalidade de garantia existe quando o devedor, com o escopo de garantia, transfere ao credor, a propriedade resolúvel de coisa imóvel. A propriedade resolúvel é aquela condicionada ao pagamento do financiamento imobiliário, ou seja, se o devedor ficar inadimplente a propriedade resolúvel será consolidada em nome do credor fiduciário, após execução extrajudicial do procedimento previsto no artigo 26 e seguintes da Lei nº 9.514/97.

A alienação fiduciária trouxe celeridade à execução da garantia, eis que todo o procedimento para a recuperação do crédito se resolve por via extrajudicial (Registro de Imóveis), cabendo ao Oficial do Registo de Imóveis a intimação do devedor para a constituição em mora, averbação do leilão realizado e demais atos pertinentes à execução da garantia, previstos na citada lei.

Ainda nos termos da lei, a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel passou a ser permitida para financiamentos em geral, não sendo privativo do SFI e SFH (Sistema Financeiro Habitacional) e instrumentalizado por meio de escritura de compra e venda de bem imóvel, com pacto de alienação fiduciária, firmada por instrumento público ou particular, nos termos do art. 38 da referida lei. A referida escritura estabelece a relação entre o vendedor do imóvel, o comprador e o agente financeiro que financia o saldo do preço, seja ele privado, do SFI ou do SFH.

A celeridade do procedimento de garantia acima e sua validação pelo Judiciário, fez com que as incorporadoras e as loteadoras passassem a utilizar o referido instituto, cumulando a função de vendedora e agente financeiro, pois financiavam diretamente aos seus clientes, praticamente abandonando a hipoteca como modalidade de garantia, eis que esta se mostrava ineficiente há muito tempo, principalmente pela morosidade na sua execução.

Consequência disso é que opera-se a plena transferência da propriedade do imóvel ao comprador com o “registro” da Escritura junto ao Cartório de Registro de Imóveis, e, ato subsequente, o devedor transfere a propriedade resolúvel do imóvel em favor do credor fiduciário/agente financeiro, que no caso em análise, tratase do loteador.

O problema é que o Poder Judiciário vem dando tratamento judicial equivocado à estrutura jurídica acima apontada, já que trata as escrituras particulares com efeito de escritura pública (artigo 38 da Lei n° 9.514/97), indevidamente, como se
fossem contratos de compromisso de compra e venda de imóveis, decretando sua rescisão judicial, ignorando que trata-
se de ato jurídico perfeito e acabado, passível de nulidade somente se constatado vício jurídico.

Exemplo disso são os julgados abaixo:

“(…) A mera existência de condição resolutiva em contrato de compra e venda com Alienação Fiduciária em garantia
não impede que o adquirente pleiteie a rescisão do contrato com base no artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor
(…)” g.n. – Voto nº 8439. Apelação Cível nº 1010838-30.2017.8.26.0344 – Comarca de Marília – Apelante Couto Rosa Empreendimentos Imobiliários SPE Ltda e Outro – Apelado: Félix Otávio Bachega.

(…) A aquisição do imóvel mediante contrato com cláusula de alienação fiduciária em garantia não afasta a incidência do Código de Defesa do Consumidor, sendo possível que o comprador rescinda o contrato, desde que antes da consolidação
da propriedade em favor da credora fiduciária (…) Cabe apontar, ainda, que o procedimento previsto nos artigos 26 e 27 da Lei n° 6.514/97, se restringe à hipótese de iniciativa da credora fiduciária, diante do vencimento e não pagamento da dívida, de consolidar a propriedade do bem para, posteriormente, promover leilão para sua alienação (…) Portanto, inexiste óbice à pretensão do consumidor, ainda que inadimplente, de rescindir o negócio por iniciativa própria, com a consequente devolução dos valores pagos (…)” g.n Apelação Cível nº 1064135-32.2017.8.26.0576 – Comarca de São Jose do Rio Preto – Apelante: SPE Terni Nature I Rio Preto Empreendimentos Imobiliários Ltda. Apelada: Fernanda Cristina Gaspar Lemes.

Vários problemas decorrem da rescisão judicial da escritura particular com força de escritura pública, cujos formatos são idênticos àqueles dos contratos de financiamento imobiliário de instituições financeiras que são contemplados pelo Oficial do Registro de Imóveis, por terem plena validade e não conterem quaisquer vícios.

Se o mesmo julgamento equivocado ocorresse para anular os contratos particulares de agentes financeiros, ninguém mais conseguiria financiar sua casa, pois as instituições financeiras deixariam de operar por total afronta à Lei n° 9.514/97, a qual dá base para as operações do mercado de capitais, a seguir descritas.

Do Mercado de Capitais

Com base nas parcelas do preço do imóvel contratado no financiamento imobiliário celebrado diretamente entre a loteadora (vendedora) e seu cliente, ocorre a originação e a emissão da CCI (Cédula de Crédito Imobiliário) e CRI (Certificado de Recebíveis Imobiliários), colocados no mercado de capitais, nos termos do artigo 6º e seguintes da Lei nº 9.514/97.

Trata-se de uma sequência de negócios jurídicos validados com base nos contratos de financiamento firmados para a venda de lotes por exemplo, refletindo operações que movimentam o mercado de capitais e imobiliário, podendo denominá-las “operações estruturadas”.

O que se alerta neste arrazoado é que o sistema de operações estruturadas está em iminente risco com atuação discricionária e desenfreada do Poder Judiciário que vem rescindindo tais escrituras que não são passíveis de rescisão, salvo se apresentasse algum vício jurídico.

A Lei nº 9.514/97 tem como um dos pilares captar recursos financeiros para estimular o crescimento dos negócios imobiliários. Não se mostra aceitável alguns Julgadores tratarem instrumentos particulares, que se assemelham aos Contratos de Financiamento do SFH/SFI emitidos pelas instituições financeiras (que a lei equipara ambos a escritura
pública) como se fossem meros contratos de promessa de compra e venda.

Quando o Poder Judiciário aplica a esses negócios jurídicos a legislação consumerista, ou do próprio Código Civil, afastando
a incidência das normas especiais da Lei nº 9.514 e da Lei nº 10.941, decretando rescisão judicial da Escritura de Venda e Compra (do instrumento que tem a mesma força de escritura pública), isso também afeta a garantia acessória ao contrato principal, ou seja, a Alienação Fiduciária, garantia real constituída não só garantidora do pagamento do preço do imóvel, como também da C.C.I emitida. Ou seja, a intervenção do Poder Judiciário na equação econômico-financeira da operação acima, gera um “efeito cascata” devastador, violando a garantia da imutabilidade do ato jurídico perfeito posta no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal.

Certo é que o Poder Judiciário deveria compreender a cadeia de negócios originados com o financiamento imobiliário garantido por Alienação Fiduciária, gerando um equilíbrio de sua atuação com a atividade econômica de empreender no Brasil, em respeito à Lei n° 9.514/97, sem trazer prejuízo e instabilidade ao negócio jurídico aqui tratado.

Concluindo, o mercado de capitais que fomenta o mercado imobiliário com suas operações estruturadas está em risco de ser prejudicado a ponto de afastar investimentos no país. O abalo da segurança jurídica desse tipo de transação inibirá a aptação de recursos financeiros, inclusive do exterior, o que certamente reverterá em maiores taxas de juros para qualquer tipo de operação lastreada em C.C.I ou similar, o que certamente, de forma indireta, refletirá negativamente no “bolso” do comprador de imóvel.

A autora é Advogada em São Paulo, SP. Especializada em Direito Imobiliário. Pós Graduada em Direito Contratual. Curso de Extensão na New York University, New York Real Estate Institute (2012) e Harvard University (2018). Membro do Conselho Jurídico da Aelo (Associação das Empresas de Loteamento e Desenvolvimento Urbano) e Comissão de Loteamentos OAB/SP.


Páginas 25, 26 e 27 | Revista BDI – Boletim do Direito Imobiliário – Novembro 2019 – 1ª Quinzena – Ano XXXIX – Nº 21