Aperfeiçoamento legislativo deve manter a garantia e preservar o condomínio

Uma oportunidade de aprimorar a alienação fiduciária

Aperfeiçoamento legislativo deve manter a garantia e preservar o condomínio

Uma disputa na justiça entre bancos e condomínios, com a oscilação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), está levando a uma insegurança jurídica que coloca sob ameaça duas realidade importantes: a eficiência da principal modalidade de financiamento imobiliário no país, a alienação fiduciária, que permitiu a diminuição dos juros e a ampliação da oferta do crédito táo importante à aquisição da casa própria, bem como o crédito condominial, a preservação do próprio imóvel e o interesse da coletividade que empreende seus esforços para a preservação do bem comum.

A alienação fiduciária trata-se da modalidade de financiamento imobiliário na qual o próprio imóvel permanece como garantia de pagamento do bem até sua quitação. Ou seja, enquanto o empréstimo não é quitado, a propriedade do imóvel permanece em nome da instituição financeira que o concedeu (propriedade resolúvel), que pode retomar o bem em caso de inadimplência.

O devedor fiduciante (que é o adquirente e passa a morar ou usufruir do imóvel) tem a posse direta do imóvel e a obrigação de pagar as “despesas de ocupação” como condomínio e IPTU, e, de outro norte, o credor fiduciário tem a posse indireta do bem, pois vinculada a sua propriedade resolúvel, isto é que se extingue com o pagamento da dívida financiada.

A propriedade em nome do banco, porém, não tem impedido que Tribunais de Justiça de Estados como Sáo Paulo, Rio Grande do Sul, Goiás e Mato Grosso do Sul autorizem que esses imóveis sejam levados à penhora e leilão para cobrir dívidas de taxa de condomínio que náo foram pagas pelo morador que realizou o empréstimo e tem a obrigação legal de pagar a taxa condominial.

A argumentação que tem prosperado nesses Tribunais é de que a questão social e coletiva dos condomínios deve se sobrepor ao direito de propriedade das instituições financeiras, uma vez que se a dívida de condomínio náo for paga, ela terá que ser rateada pelos demais moradores que não tem nada a ver com o assunto. Além disso, os desembargadores entendem que se trata de uma divida propter rem, ou seja, uma dívida que estaria atrelada ao imóvel e não ao morador ou real proprietário.

Ocorre que a Lei 9.514, de 1997, que instituiu a alienação fiduciária, expressa literalmente que nessa modalidade de financiamento, a propriedade do imóvel, ainda que resolúvel, pertence ao banco, bem como que o devedor fiduciante, o adquirente que usufrui do bem, deve ser o responsável pelo pagamento da dívida de condomínio.

Dessa forma, a corrente que defende a alienação fiduciária e se contrapõe à interpretação referida destes tribunais afirma que o imóvel do banco jamais poderia ser levado à leilão por não pertencer ao devedor de fato.

A disputa ganhou força após o STJ mudar recentemente sua posição sobre o assunto. Ao julgar o Recurso Especial 2.059.278, os ministros da 4a Turma do Tribunal reverteram a tendência do próprio colegiado ao permitir que um imóvel com alienação fiduciária fosse levado à leiláo para o pagamento de dívidas condominiais.

0 raciocínio da 4a Turma do STJ foi de que não seria possível admitir a suspensão do caráter propter rem da obrigação durante a vigência do contrato de alienação fiduciária em detrimento da coletividade condominial. Além disso, eles afirmaram que essa situação deixaria o devedor e o credor fiduciário em uma posição muito confortável, especialmente no caso de adimplência do financiamento, uma vez que a satisfação dos débitos condominiais precisaria aguardar a consolidação da propriedade em favor de um deles.

Ao avesso da decisão acima, a terceira turma do STJ, ao apreciar o REsp 2.036.289/RS, com a relatoria da ministra Nancy Andrighi, julgou em 18 de abril de 2023 em sentido diametralmente oposto.

Náo é difícil dimensionar o tamanho da insegurança jurídica que essa alteração de tendência nos julgamentos do STJ traz para todo o setor de crédito imobiliário e às relações condominiais. Aliás, qual instituição financeira se sentirá segura em conceder um empréstimo para compra de imóvel sabendo que o mesmo pode ser tomado caso seu cliente náo honre com o pagamento das taxas de condomínio?

Essa decisão obviamente terá um peso muito grande em novos empréstimos que certamente sofrerão um acréscimo para compensar o aumento do risco. Por outro lado, alguns bancos também podem ponderar que náo vale a pena o risco e abandonar o produto, reduzindo a oferta de crédito e impactando em um custo maior.

Se é bem verdade que o interesse coletivo, a própria manutenção da coisa para sua existência, deve ser preservado (o que seria do próprio banco se grande parte dos condôminos de um determinado empreendimento ficassem inadimplentes?), também é que o risco do crédito das instituições financeiras pode levar ao incremento de juros, à retração de oferta de crédito e consequentemente do próprio mercado, chegando até a dificuldade da aquisição da casa própria por grande parcela da população.

A preservação do instituto da alienação fiduciária e a saúde financeira do condomínio interessam ao sistema de produção e aquisição de bens imóveis neste tipo de empreendimento.

Percebe-se aqui uma oportunidade para o aperfeiçoamento legislativo da alienação fiduciária, para de um lado manter a inteligência e eficiência da garantia, mas de outro coibir a acomodação da instituição financeira e o prejuízo do condomínio, da coletividade e da própria coisa.

Há que se atribuir a obrigação do condomínio de notificar a instituição da dívida para iniciar a cobrança. Uma vez que esta for informada da sua existência, inicia- se por um meio célere o procedimento da consolidação com a cobrança da dívida, ainda que só condominia!, sob pena da instituição de responder com o próprio imóvel. Algo a ser maturado nessa linha.

Como ferramenta imediata para estas atribuições e responsabilidades — lembra- se que a atual legislação já prevê que garantia não se afeta apenas ao financiamento, mas também àquelas obrigações inerentes à operação, conforme artigo 26, §1 o, da Lei 9.514/1997, que inclui no cálculo do valor da dívida e o valor das contribuições condominiais. Detectado o inadimplemento das cotas condominiais, ainda que pagas as parcelas do financiamento, o banco deve excutir a garantia, consolidando a propriedade em seu nome e levando o imóvel à leilão para satisfazer a dívida.

Não deve se tratar de um embate, entre os institutos da alienação fiduciária de o condomínio, mas da preservação de um sistema da aquisição de produção e aquisição de propriedade imobiliária do qual ambos sáo pilares importantes.

KELLY DURAZZO — Advogada, sócia do Durazzo & Medeiros Advogados e presidente da Coordenaria da Comissão de Loteamento da OAB-SP

MOIRA TOLEDO — Advogada, diretora de risco e governança da Lello Imóveis e vice-presidente de Administração de Imóveis e Condomínios do Secovi-SP

Uma oportunidade de aprimorar a alienação fiduciária

Aperfeiçoamento legislativo deve manter a garantia e preservar o condomínio

Crédito: Pixabay

Uma disputa na justiça entre bancos e condomínios, com a oscilação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), está levando a uma insegurança jurídica que coloca sob ameaça duas realidade importantes: a eficiência da principal modalidade de financiamento imobiliário no país, a alienação fiduciária, que permitiu a diminuição dos juros e a ampliação da oferta do crédito táo importante à aquisição da casa própria, bem como o crédito condominial, a preservação do próprio imóvel e o interesse da coletividade que empreende seus esforços para a preservação do bem comum.

A alienação fiduciária trata-se da modalidade de financiamento imobiliário na qual o próprio imóvel permanece como garantia de pagamento do bem até sua quitação. Ou seja, enquanto o empréstimo não é quitado, a propriedade do imóvel permanece em nome da instituição financeira que o concedeu (propriedade resolúvel), que pode retomar o bem em caso de inadimplência.

O devedor fiduciante (que é o adquirente e passa a morar ou usufruir do imóvel) tem a posse direta do imóvel e a obrigação de pagar as “despesas de ocupação” como condomínio e IPTU, e, de outro norte, o credor fiduciário tem a posse indireta do bem, pois vinculada a sua propriedade resolúvel, isto é que se extingue com o pagamento da dívida financiada.

A propriedade em nome do banco, porém, não tem impedido que Tribunais de Justiça de Estados como Sáo Paulo, Rio Grande do Sul, Goiás e Mato Grosso do Sul autorizem que esses imóveis sejam levados à penhora e leilão para cobrir dívidas de taxa de condomínio que náo foram pagas pelo morador que realizou o empréstimo e tem a obrigação legal de pagar a taxa condominial.

A argumentação que tem prosperado nesses Tribunais é de que a questão social e coletiva dos condomínios deve se sobrepor ao direito de propriedade das instituições financeiras, uma vez que se a dívida de condomínio náo for paga, ela terá que ser rateada pelos demais moradores que não tem nada a ver com o assunto. Além disso, os desembargadores entendem que se trata de uma divida propter rem, ou seja, uma dívida que estaria atrelada ao imóvel e não ao morador ou real proprietário.

Ocorre que a Lei 9.514, de 1997, que instituiu a alienação fiduciária, expressa literalmente que nessa modalidade de financiamento, a propriedade do imóvel, ainda que resolúvel, pertence ao banco, bem como que o devedor fiduciante, o adquirente que usufrui do bem, deve ser o responsável pelo pagamento da dívida de condomínio.

Dessa forma, a corrente que defende a alienação fiduciária e se contrapõe à interpretação referida destes tribunais afirma que o imóvel do banco jamais poderia ser levado à leilão por não pertencer ao devedor de fato.

A disputa ganhou força após o STJ mudar recentemente sua posição sobre o assunto. Ao julgar o Recurso Especial 2.059.278, os ministros da 4a Turma do Tribunal reverteram a tendência do próprio colegiado ao permitir que um imóvel com alienação fiduciária fosse levado à leiláo para o pagamento de dívidas condominiais.

0 raciocínio da 4a Turma do STJ foi de que não seria possível admitir a suspensão do caráter propter rem da obrigação durante a vigência do contrato de alienação fiduciária em detrimento da coletividade condominial. Além disso, eles afirmaram que essa situação deixaria o devedor e o credor fiduciário em uma posição muito confortável, especialmente no caso de adimplência do financiamento, uma vez que a satisfação dos débitos condominiais precisaria aguardar a consolidação da propriedade em favor de um deles.

Ao avesso da decisão acima, a terceira turma do STJ, ao apreciar o REsp 2.036.289/RS, com a relatoria da ministra Nancy Andrighi, julgou em 18 de abril de 2023 em sentido diametralmente oposto.

Náo é difícil dimensionar o tamanho da insegurança jurídica que essa alteração de tendência nos julgamentos do STJ traz para todo o setor de crédito imobiliário e às relações condominiais. Aliás, qual instituição financeira se sentirá segura em conceder um empréstimo para compra de imóvel sabendo que o mesmo pode ser tomado caso seu cliente náo honre com o pagamento das taxas de condomínio?

Essa decisão obviamente terá um peso muito grande em novos empréstimos que certamente sofrerão um acréscimo para compensar o aumento do risco. Por outro lado, alguns bancos também podem ponderar que náo vale a pena o risco e abandonar o produto, reduzindo a oferta de crédito e impactando em um custo maior.

Se é bem verdade que o interesse coletivo, a própria manutenção da coisa para sua existência, deve ser preservado (o que seria do próprio banco se grande parte dos condôminos de um determinado empreendimento ficassem inadimplentes?), também é que o risco do crédito das instituições financeiras pode levar ao incremento de juros, à retração de oferta de crédito e consequentemente do próprio mercado, chegando até a dificuldade da aquisição da casa própria por grande parcela da população.

A preservação do instituto da alienação fiduciária e a saúde financeira do condomínio interessam ao sistema de produção e aquisição de bens imóveis neste tipo de empreendimento.

Percebe-se aqui uma oportunidade para o aperfeiçoamento legislativo da alienação fiduciária, para de um lado manter a inteligência e eficiência da garantia, mas de outro coibir a acomodação da instituição financeira e o prejuízo do condomínio, da coletividade e da própria coisa.

Há que se atribuir a obrigação do condomínio de notificar a instituição da dívida para iniciar a cobrança. Uma vez que esta for informada da sua existência, inicia- se por um meio célere o procedimento da consolidação com a cobrança da dívida, ainda que só condominia!, sob pena da instituição de responder com o próprio imóvel. Algo a ser maturado nessa linha.

Como ferramenta imediata para estas atribuições e responsabilidades — lembra- se que a atual legislação já prevê que garantia não se afeta apenas ao financiamento, mas também àquelas obrigações inerentes à operação, conforme artigo 26, §1 o, da Lei 9.514/1997, que inclui no cálculo do valor da dívida e o valor das contribuições condominiais. Detectado o inadimplemento das cotas condominiais, ainda que pagas as parcelas do financiamento, o banco deve excutir a garantia, consolidando a propriedade em seu nome e levando o imóvel à leilão para satisfazer a dívida.

Não deve se tratar de um embate, entre os institutos da alienação fiduciária de o condomínio, mas da preservação de um sistema da aquisição de produção e aquisição de propriedade imobiliária do qual ambos sáo pilares importantes.

KELLY DURAZZO — Advogada, sócia do Durazzo & Medeiros Advogados e presidente da Coordenaria da Comissão de Loteamento da OAB-SP

MOIRA TOLEDO — Advogada, diretora de risco e governança da Lello Imóveis e vice-presidente de Administração de Imóveis e Condomínios do Secovi-SP